sábado, 28 de abril de 2018

Jockerman, Bob Dylan - tradução

Jockerman - Tradução.
CORINGA

De pé sobre as águas
Distribuindo o seu pão (1)
Enquanto os olhos do ídolo
Com a cabeça de ferro brilham (2)

Navios distantes
Navegam pra bruma (3)
Você nasceu com uma serpente em ambos os punhos
Enquanto um furacão soprava (4)

Liberdade, bem ali na esquina pra você
Mas com a Verdade tão distante
Que bem iria fazer? (5)

Coringa dançando para a melodia do rouxinol
Pássaro voa alto à luz da lua
Oh, Coringa

Tão rápido o sol se põe no céu,
Você se ergue e se despede de ninguém (6)
Tolos se precipitam
Aonde os anjos temem pisar

Ambos os futuros tão cheios de horror
Você não revela nenhum (7(
Trocando mais uma camada de pele
Mantendo um passo à frente do perseguidor interior (8)

Você é um homem da montanha
Você pode caminhar sobre as nuvens

Manipulador das multidões
Você faz os sonhos se torcerem
Você vai pra Sodoma e Gomorra,
Mas o que te importava?
Não tem ninguém por lá
Que quisesse casar com sua irmã (9)

Um amigo do mártir,
Um amigo da mulher da vergonha, (10)
Você olha a fornalha ardente
Vê o homem rico sem nome (11)

O livro de Levítico
E o Deuteronômio (12)
A lei da selva e o mar
Foram seus únicos mestres

Na fumaça de um crepúsculo
Sobre um corcel branco como leite
Michelangelo, realmente,
Podia ter esculpido sua figura (13)
Descansando nos campos, longe do espaço turbulento,
Meio adormecido entre as estrelas
Com um cachorro pequeno lambendo a sua face (14)

O homem do rifle faz tocaia
Para o doente e o aleijado
O pastor vai receber o mesmo
Quem vai chegar primeiro, é incerto (15)

Cacetetes e canhões de água,
Gás lacrimejante, cadeados,
Coquetéis molotov, e pedras,
Atrás de cada cortina  (16)
Juízes de coração falso
Morrendo nas teias que tecem (17)

Apenas uma questão de tempo
Até que a noite venha se aproximando (18)
É um mundo repleto de sombras
Os céus são escorregadios e cinza (19)

Uma mulher deu à luz um príncipe hoje
E o vestiu de escarlate (20)
Ele vai colocar o sacerdote no bolso (21)
Vai colocar a lâmina para aquecer (22)
Vai tirar as crianças sem mãe das ruas
E colocá-las aos pés de uma prostituta.(23)

Oh, coringa, você conhece o desejo do homem!
Oh, coringa, você não oferece qualquer réplica!

Coringa dança para a melodia do rouxinol
Pássaro voa alto à luz da lua
Oh, Coringa

(1) No primeiro verso, já temos a referência a Jesus, embora em nenhum momento da canção ele seja diretamente mencionado. Mas Jesus é quem caminha, ou fica em pé, sobre as águas do Lago de Genesaré, na Galiléia. No segundo verso, a referência é ao milagre da multiplicação dos pães (ver Mateus 14, 14 a 33).

(2) Deve ser a inveja que faz brilhar os olhos do ídolo feito de ferro, diante da visão do Deus vivo.

(3) Os navios do lago da Galiléia, onde Jesus caminhou sobre as águas? Uma metáfora das vidas caminhando para a morte?

(4) Hércules estrangulou com os punhos, no berço, duas serpentes enviadas por Juno para matá-lo. Também o furacão indica um momento de perturbação, talvez uma referência à reação violenta do velho mundo ameaçado pela nova era que seria inaugurada pelo Messias. Herodes e o massacre dos inocentes.

(5) Nesta estrofe, a referência talvez seja à tentação de Jesus no Jardim de Getsemani. Ele poderia se livrar de seus perseguidores e de seu destino. Bastaria rezar ao Pai, e um exército de anjos surgiria para afastá-lo do cálice. Mas com a Verdade perdida, de que serviria? Jesus não se apresenta como o Caminho, a Vida e a Verdade? E a Verdade não libertará? Seja feita a Vossa vontade, portanto. (cf. João 8, 21 a 47).

(6) O sol se põe, a morte na cruz? E, após, erguer-se pode ser uma referência à ressurreição, e que não haveria despedida, porque permaneceria vivo como Espírito Santo para seus discípulos.

(7) Um aspecto do Coringa, o misterioso. Os tolos e os anjos têm de enfrentar seus destinos, e a morte, cada qual à sua maneira, mas ambos na escuridão. “Pois eu vos digo: Amai vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem, para serdes filhos de vosso Pai que está nos céus. Porque ele faz nascer o sol para bons e maus, e chover sobre justos e injustos.”

(8) Novas referências à ressurreição? O perseguidor interior = a morte?

(9) A referência aqui é a Gênesis, 18 e 19. O Jokerman é identificado com o próprio Deus, que decidiu destruir Sodoma e Gomorra pela impiedade de seus habitantes. Mas antes envia dois anjos que vão livrar o justo Ló e sua família da aniquilação. “Ninguém por lá que quisesse casar com sua irmã” - a irmã do Jokerman seria as duas filhas de Ló, o homem justo? Casar com elas seria desposar a justiça. Mas os habitantes de Sodoma queriam violentar os hóspedes de Ló, os anjos do Senhor. O que importava ao Senhor visitar a terra dos homens ímpios? Ainda assim, Ele o faz, na representação de Seus anjos, e conforme a instigação de Abraão, para defender os Seus justos. Ou, melhor dizendo, os que tentam ser justos. Não é fácil entender a atitude de Ló, sacrificando a honra de suas filhas pela de seus hóspedes.

(10) “Amigo do mártir”, como, por exemplo, no apedrejamento de Estêvão (Atos, 7, 54 a 60), o primeiro mártir. “Amigo da mulher da vergonha”, por exemplo, ao salvar do apedrejamento a mulher adúltera (João, 8, 1 a 11), ou ao perdoar os pecados da mulher comumente identificada como Maria Madalena (Lucas, 7, 36-50).

(11) O rico sem nome aparece na parábola do rico e do pobre Lázaro, Lucas, 16, 19-31. Este rico da parábola de fato arde no fogo, e não tem nome, ao contrário do pobre, chamado Lázaro. Talvez não ter nome signifique perder a identidade, por amor à riqueza, ou que a condenação não se prende a um homem específico, mas à condição do homem, qualquer homem, que se prende à riqueza. Que idolatra a riqueza.

(12) Quando perguntaram a Jesus qual era o maior mandamento da Lei, Ele respondeu: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o coração, com toda a alma e com toda a mente. Este é o maior e o primeiro mandamento. Mas o segundo é semelhante a este: Amarás o próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas” (cf. Mateus, 22, 34 a 40). O primeiro mandamento Jesus retira de Deuteronômio 6,5, e o segundo, de Levítico, 19,18. Daí os mestres de Jesus, além da lei da selva e o mar, isto é, a própria natureza.

(13) Michelangelo realmente esculpe a figura de Jesus, mas apenas na Pietá, que eu me lembre. O “corcel branco como leite” pode ser apenas símbolo de majestade.

(14) Este trecho me parece uma representação da natureza dupla de Jesus, divina e humana. Em paralelo, o turbulento espaço/as estrelas, e os campos/o cachorrinho lambendo a face.

(15) Os pastores, os doentes, os aleijados, são todos vítimas do homem com o rifle fazendo tocaia, da crueldade e da covardia humanas, da morte. Permanece oculto o destino de cada um, quem vai ser o primeiro a enfrentar a morte? (Who´ll get there first is uncertain). Compare nota 7.

(16) Nas imagens de um distúrbio de rua, de um conflito entre policiais e manifestantes, um símbolo para a violência que se oculta em cada coração. A hipocrisia.

(17) Nova imagem de hipocrisia, agora como causadora da perdição daqueles mesmos que a praticam.

(18) Noite=morte. A igualadora, inescapável. “Apenas uma questão de tempo...”

(19) Imagem trágica da vida: incerta, enganadora (cinza), com a sorte mutável (escorregadia), e ameaçada pelo mal (mundo repleto de sombras).

(20) Nesta vida trágica surge a esperança, Jesus, o Príncipe que foi dado à luz pela humilde Maria. Ela o vestiu de escarlate, cor que denota nobreza, ou com seu próprio sangue no momento do parto, a natureza humana desse Deus surpreendente, motivo de escândalo para tantos?

(21) São diversas as passagens em que Jesus surpreende e confunde os sacerdotes, os escribas, os doutores da Lei. Por exemplo, Mateus, 22, 15 - 22, 41 - 46; João, 3, 1 - 15. E “ficaram todos tão espantados que perguntavam uns aos outros: “O que é isso? Uma doutrina nova, dada com autoridade! Ele manda até nos espíritos impuros e eles lhe obedecem” (Marcos, 1, 27 - 28).

(22) “Colocar a lâmina para aquecer”, como um ferreiro que aumenta o gume da espada, tornando-a mais afiada. “Não penseis que vim trazer a paz à terra. Não vim trazer a paz, e sim a espada. Pois vim separar o filho de seu pai, a filha de sua mãe, a nora de sua sogra. Os inimigos da gente serão os próprios parentes” (Mateus, 10, 34 - 36 e Miquéias, 7,6).

(23) Jesus mostra-se frequentemente surpreendente, como estes versos, subvertendo os valores corriqueiros. Ver nota 10, exemplos da atitude de Jesus, escandalosa aos olhos de seus contemporâneos, de perdão diante das “mulheres da vergonha”. “Tirar as crianças sem mãe das ruas, e colocá-las ao pé da prostituta”, significará amparar as crianças deixadas ao abandono pela indiferença humana, e honrar as prostitutas, habituais repositórios do desprezo dos felizardos(as) bem-de-vida, confiando aqueles órfãos aos cuidados destas.

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