sábado, 14 de maio de 2011

Educação, histórias e sentido em Hannah Arendt

A Crise.
Durante muito tempo autoridade, religião e tradição garantiram um chão estável para a ação e o pensamento humanos. As pessoas tinham uma referência comum no seu modo de ver o mundo e de entender seu papel neste. Isso não significa que o mundo era bom ou justo, mas que mesmo havendo conflitos, todas as partes se remetiam e legitimavam seu ponto de vista a partir de um mesmo solo.

O mundo moderno perdeu as referências comuns: Sem mais nada sagrado nem auto-evidente, diz Arendt, somos confrontados de novo “com os problemas elementares da convivência humana”. 
Perdemos as certezas e o apoio de uma tradição que nos oferecia categorias e valores que serviam de orientação para o pensamento. Numa sociedade atomizada, ainda existem grupos menores que compartilham “sentidos” – grupos que conservam tradições comunitárias, comunidades religiosas, movimentos sociais que fornecem uma moldura para a vida dos indivíduos – mas não ha um sentido abrangente com o qual possamos nos identificar. Não mais herdamos princípios e significados, por fazer parte de uma determinada comunidade, mas fazemos escolhas individuais.
      
Para Arendt, essa fragmentação do modo como nos inserimos no mundo, afeta, tanto o plano da ação quanto o plano do pensamento. No âmbito da ação, a satisfação de interesses particulares, de indivíduos ou grupos, se sobrepõe a qualquer preocupação com o mundo comum.

Precisamos fazer as perguntas primeiras sobre o sentido do mundo e da nossa participação neste – ou, então, simplesmente consumir alguma oferta. A perda de certezas esta diretamente ligada à crise na educação. Como introduzir as crianças no mundo sem a orientação de uma tradição que “selecione e nomeie, que transmita e preserve, que indique onde se encontram os tesouros e qual o seu valor”.

Arendt resume a crise na educação da seguinte maneira:

O problema da educação no mundo moderno está no fato de, por sua natureza, não poder esta abrir mão nem da autoridade, nem da tradição, e ser obrigada, apesar disso, a caminhar em um mundo que não é estruturado nem pela autoridade nem tampouco mantido coeso pela tradição.

Arendt aponta para o impasse, mas não nos oferece nenhuma solução. De fato, talvez não haja solução, a menos, que seja fácil e rápida, já que a crise na educação não pode ser dissociada da instalada no mundo moderno. A crise, no entanto, também representa uma oportunidade. Ela suscita a reflexão sobre a essência e o sentido das coisas. “O que é educar?” se pergunta a autora em seu ensaio sobre educação. 
                                       
Como educar para pensar, quando os alunos são atores, vítimas ou testemunhas de acontecimentos que envolvem “seres supérfluos” e não pessoas? Como educar num mundo, onde não ha mais sentido herdado, nem certezas absolutas e onde somos obrigados a buscar o sentido das coisas por conta própria e, ao mesmo tempo, nos deparamos com acontecimentos aos quais não podemos atribuir nenhum sentido?  A ausência de sentido produz estranhamento e alienação do mundo de modo que o
único lugar que nos pode oferecer um “lar na Terra” se torna um espaço hostil, um deserto, onde estamos SOS, já que não ha nada que nos possa unir aos outros. Precisamos salvar “a própria pele”, mas na luta pela sobrevivência não ha significados, da mesma forma que, no reino do consumo desenfreado, numa esfera onde somos o que consumimos, também não pode haver sentido. Onde nada mais faz sentido não podemos nos sentir em casa.

A fé no mundo e a reconciliação.
A educação, no entanto, tem a tarefa de acolher os novos – ainda estrangeiros – num mundo de significados compartilhados, e de familiarizá-los com ele, isto é, educar e fazer com que as crianças e os jovens possam “se sentir em casa” no mundo.

Em seu ensaio A Crise na Educação, Arendt mostra o impasse da educação num mundo inóspito. Radicalizando um pouco, podemos dizer que a autora aponta para duas alternativas diante desse problema: ou desistimos do mundo e das crianças ou resolvemos que, apesar de tudo, apostaremos no mundo e cuidamos dos novos. O dilema da educação e: Como introduzi-los num mundo fragmentado, isto e, sem autoridade e sem tradição? Arendt parece responder: Não sei, mas sei que não podemos abrir mão nem do mundo nem das crianças.

A educação e o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens. A educação é, também, onde decidimos se amamos as nossas crianças o bastante para não expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos, e tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós, preparando-as em vez disso com antecedência para a tarefa de renovar um mundo comum.

A educação é o ponto decisivo e no centro da nossa decisão está o amor mundi: ou esse se mostra mais relevante do que a ausência de sentido e as barbaridades cometidas ou abrimos mão do mundo comum. O amor mundi, entretanto, não deve ser confundido com otimismo de quem ingenuamente diz “Tudo vai ficar bem”, mas está relacionado a uma atitude básica de afirmação do mundo que faz com que, apesar de tudo, dele não desistamos. Esse acreditar no mundo e nos seres humanos que, a principio, são capazes de dar continuidade a ele, está relacionado à confiança de que podemos encontrar um sentido naquilo que acontece entre os homens.

Glenn Gray no artigo Winds of Thought (Os Ventos do Pensamento) mostra que a mesma Arendt, que constata que hoje ”nada mais parece fazer sentido”, não desiste da busca de sentido. Isso, a nosso ver, esta associado a uma atitude em relação ao mundo e as pessoas nele, que chamaremos de fé no mundo. O termo fé aqui não diz respeito a nada extra-mundano, mas esta intrinsecamente relacionada ao amor mundi, o qual “teima” em não abrir mão do mundo comum, mesmo contra qualquer probabilidade histórica de sucesso. O fundamento dessa fé talvez seja aquilo que ela mesma chamava de “gratidão básica por tudo que é como é”.

Podemos dizer que a confiança no mundo como ele é e a ação transformadora são interdependentes. Em seu ensaio “Que é liberdade?”, Arendt explica que a potência inerente à liberdade humana, “não e a vontade, e sim a fé”, que nas palavras do Evangelho é: “capaz de remover montanhas”.

Esse “dizer sim” ao mundo, ao se voltar para o futuro, representa a confiança na capacidade de agir e na possibilidade do enfrentar o imprevisto. Reconciliar-se com o mundo não é tudo aceitar, nem conformar-se com o que passou, mas significa que temos de entrar em algum acordo com este mundo do qual dependemos e o qual depende de nós. Talvez haja coisas que não podemos desculpar, mas essas não devem, a principio, nos fazer abrir mão da possibilidade de criar e preservar o espaço de convivência. Esse espaço depende do pensamento que pode lhe atribuir algum sentido. Isto é, a tentativa de compreender os acontecimentos no mundo nos ajuda a lidar com o ocorrido de modo que esse não destrua a possibilidade de continuarmos a conviver.

Tentar compreender e buscar a reconciliação com o mundo, porque somente quando os fatos fazem algum sentido, podemos aceitá-los. Isso não é resignação, mas é dizer que esse mundo continua sendo nosso, mesmo que não concordemos com muitas coisas nele. Ele não deixa de ser constitutivo para cada um de nós e não podemos desistir dele, sem perdermos a nós mesmos.

Podemos sim ajudar os alunos a encontrarem uma porta de entrada para as historias, partindo do pressuposto de que eles, a princípio, são capazes de compreender experiências humanas fundamentais, embora sua compreensão possa divergir da nossa. 

Por Vanessa Sievers de  Almeida - USP

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